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Sobre a Inveja — e os Que Juram Não a Ter

Há muito tempo, quando os monges tentavam mapear os abismos da alma humana, nasceram os sete pecados capitais - sete portas, sete espelhos, sete advertências. Não eram, como muitos pensam, apenas proibições morais, mas retratos fiéis do coração humano, cada um refletindo um excesso, uma desmedida, um desequilíbrio. São Gregório Magno lhes deu forma; São Tomás de Aquino, substância. Desde então, seguimos tentando decifrar as mesmas paixões que nos constroem e nos destroem, como quem tenta segurar o vento com as mãos.

Entre essas sete criaturas do espírito, há uma que se move em silêncio e sorri de lado: a inveja. Diferente da ira, que grita, ou da gula, que devora, a inveja sussurra. É uma serpente de seda, um veneno educado. Disfarça-se de elogio, de comentário casual, de ironia bem-humorada. E ninguém, absolutamente ninguém, se reconhece nela. Somos sempre os invejados - nunca os invejosos.

São Tomás de Aquino, cirurgião das paixões, definiu a inveja como a tristeza diante do bem alheio. Não é o desejo de possuir, mas a dor de ver o outro possuir. É a sombra que se inquieta com a luz próxima.

A cobiça quer ter; a inveja quer que o outro não tenha.

Há uma delicada perversidade nesse movimento. A cobiça, ao menos, ainda sonha, almeja o objeto, deseja conquistá-lo. A inveja, não. Ela é um desejo que já nasceu cansado, um sonho abortado. Não quer subir; quer puxar. Não quer aprender; quer apagar.

Os gregos a chamavam phthonos (desgosto pelo bem alheio), e diziam que os deuses a detestavam porque ela era o único mal capaz de subir ao Olimpo. Aristóteles, sempre atento à natureza humana, via nela a dor que nasce quando alguém próximo de nós prospera. É a ferida do semelhante – reparem aqui que o sucesso distante não fere - mas o próximo feliz nos arde como espinho.

A psicologia moderna apenas traduziu esse drama em outra língua. Adler falaria em “complexo de inferioridade”; Jung, em “sombra projetada”. Mas no fundo é o mesmo teatro: o eu que não suporta ver o espelho refletir alguém mais inteiro.

A inveja tem um talento admirável: disfarçar-se de virtude.

É a única tristeza que se mascara de lucidez.

O invejoso costuma se ver como observador crítico, como alguém “apenas realista”, “sóbrio”, “não iludido pelos holofotes”. Por dentro, porém, carrega uma melancolia sem nome: a dor de não ser o outro.

E o mais curioso é que todos se acham vítimas desse veneno, mas nunca seus fabricantes. “Me invejam”, dizem com orgulho - como se a inveja alheia fosse um troféu invisível. O mundo se encheu de pessoas convencidas de que brilham demais para não incomodar. É uma vaidade travestida de autodefesa.

Afinal, admitir a própria inveja seria tocar no nervo mais sensível do ego, e o ego não gosta de se ver sem maquiagem.

Vivemos em um tempo em que tudo é vitrine. A felicidade virou mercadoria de exposição, e as almas desfilam suas conquistas digitais. A inveja, nesse cenário, floresce como orquídea na sombra - silenciosa, elegante, quase bela.

Ela é o veneno da comparação constante, o sal que corrói as feridas abertas pelo “por que não eu?”. O invejoso é um jardineiro que só rega o terreno vizinho para ver se consegue apodrecer as flores. Vive em exílio: não mora em si, mas no reflexo do outro.

Psicologicamente, é o eu sem centro, o ser que se mede por medidas alheias.

A inveja é o descompasso entre o que se é e o que se imagina dever ser. É uma ferida narcísica que sangra silenciosa e quanto mais se tenta escondê-la, mais ela se alastra.

Há algo de profundamente irônico no fato de que os que mais se dizem “de luz” costumam negar a própria escuridão.

São os “bons” que mais cultivam sombras secretas. Os que juram não invejar ninguém são os que mais se consomem comparando-se em silêncio.

O verdadeiro perigo espiritual não está no pecador que reconhece seus vícios, mas no santo que os reprime. Aquele que acredita não pecar fecha os olhos para metade de si. A alma, quando tenta ser pura demais, cria suas próprias rachaduras.

Jung, com sua sabedoria paciente, dizia que ninguém se ilumina imaginando figuras de luz, mas tornando consciente a própria escuridão. E São Tomás, muitos séculos antes, já intuía o mesmo: que o caminho da virtude não é a negação, mas o equilíbrio.

Rir de nossa inveja, confessá-la, é um gesto de maturidade espiritual.

É admitir que dentro de nós há um pequeno demônio curioso, que se incomoda com o brilho alheio e que, se for ouvido com ternura, pode até se converter em mestre.

A inveja, como todos os pecados capitais, é uma força desviada de seu eixo.

O fogo que destrói também pode aquecer, se controlado.

A energia que a inveja carrega - o desejo de ser, de crescer, de ter brilho não é má em si; apenas perdeu o rumo. Quando a consciência desperta, ela pode transmutar-se em admiração.

O autoconhecimento é essa alquimia silenciosa: transformar veneno em elixir.

Reconhecer a inveja é esvaziar-lhe o poder.

Quando nos permitimos olhar para ela sem medo, percebemos que o brilho do outro não diminui o nosso, apenas o revela. Há uma beleza humilde em aceitar que todos os sete pecados moram em nós, cada um dormindo num canto da alma. Alguns despertam cedo, outros quase nunca. Mas estão todos lá, esperando serem vistos.

E só quem conhece seus demônios pode dançar com eles sem se queimar.

Afinal, o inferno não é um lugar - é um espelho.

E o céu talvez seja apenas o instante em que temos coragem de encará-lo.

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