Foto de capa da notícia

Mudança de conceito

Ela chegou em casa naquele dia cansada. Trocou o sapato por um chinelo velho, tirou o uniforme, colocou uma roupa de ficar em casa e foi adiantar o serviço da casa até dar a hora de buscar seu bebê na escola. Limpa dali, tira pó daqui e o corpo pediu pausa. Se sentou no sofá encostada nas almofadas e sem perceber, cochilou. Acordou uma hora depois com o telefone tocando. Havia passado o horário. 

Atrasada, pegou um Uber para chegar mais rápido. Sem paciência para as lisonjas do motorista que  mirava suas curvas dos pés à cabeça, agradeceu a corrida e desceu. Ao se preparar para pedir desculpas pelo atraso de 15 minutos, notou de longe seu bebê todo mordido e com hematomas na face. E ouviu da “tia da creche” todas as justificativas... Dentre os quais, a ausência de funcionárias, a quantidade exorbitante de criança em curto espaço, a agilidade da idade, a fase oral... 

Embalou o menino em seus braços, e enquanto ouvia de fundo todas aquelas palavras, um sentimento de culpa a domava por dentro. Se não fosse a necessidade do trabalho, se não fosse a separação do marido, se tivesse fingido não ver a traição, se não tivesse saído de casa tão jovem, se tivesse aguentado mais um pouco as humilhações do padrasto até concluir os estudos. Se... se... se... Pediu à senhora da escola que não mais se repetisse, e enquanto andava sem ter dinheiro para pagar uma nova corrida, aninhava-o com mais força, como se desejasse sentir sua presença novamente em seu ventre. 

Ela precisava ser forte. Já não era uma sementinha, mas um broto que tendo nascido entre as rochas, precisava florescer como árvore de raiz forte para proteger os seus. Ao nascer o seu filho, nasceu também uma mãe e por aquele menino daria a sua vida, não talvez como uma mãe perfeita, mas como uma mãe que amava não mediria esforços para vê-lo dar certo na vida! 

Dias se passaram. As mordidas em seu filho se repetiram outras vezes, a professora explicou que a fase oral é quando o bebê tendo idade entre um ano e dois e meio, passa a morder como forma de se comunicar. Se gosta de um amiguinho, morde. Ao ficar irritado pelo calor, morde. Ao sentir fome, ciúme, nostalgia ou sono, o bebê morde. Mesmo com as monitoras ficando atentas, impedindo mordidas constantes, a quantidade de bebês para poucas funcionárias e com a ausência de uma, deixava difícil acertar integralmente. Ela ouviu, consentiu, pediu que reforçassem os esforços e foi para casa. 

O imprevisto aconteceria. O seu menino, depois de mordido tantas vezes, aprendeu a morder aquele coleguinha que lhe abocanhou muitas vezes. Para a surpresa de todos, a avó e o pai do outro bebê não quiseram saber se ele também estava na fase oral. Chegaram na escola tirando satisfação com todos, gritando aos quatro cantos que era inaceitável o seu anjinho ir para casa com hematomas e queriam saber quem era o bebê a morder seu neto, como se procurassem um adolescente de 18 anos. 

A monitora e a professora tentaram explicar as etapas da fase oral, tentaram explicar a quantidade de vezes que haviam impedido as mordidas, sem sucesso. O sentimento de injustiça havia cegado os olhos daquela avó e daquele pai, impedido os outros sentidos de entender que ambos os bebês precisavam de orientação e tempo para compreender o que era certo ou não. 

A mãe da primeira criança continuou a educação do seu filho ensinando que o errado é sempre errado, mesmo que parecesse certo. A avó e o pai, que tinham a guarda unilateral da criança, continuaram a educar o segundo menino como o centro das atenções, sem limite, fingindo não ver os erros, sem corrigir sua conduta. Afinal, coitadinho, já não tinha mãe. 

Aos 4 anos um tentava resolver os problemas com os amigos conversando. O outro agredia e não obedecia a ninguém. Aos 9 anos, um era educado e tirava boas notas na escola. O outro batia nos colegas e quando brigava na escola, o pai perguntava ao menino se havia apanhado ou batido. Se apanhava na escola, apanhava também em casa para aprender que filho seu não leva “desaforo para casa”. 

Na adolescência um era gentil com todos os colegas, o outro fumava, já não ia para a escola, tinha aprendido a roubar o dinheiro da velha (sua avó), quebrava as janelas e destruía tudo que via pela frente. Até o dia em que ambos se apaixonaram. O primeiro, garantiu a sorte à jovem com quem se casou de ter ao seu lado um homem masculino, que era ético, gentil, educado, trabalhador e honrava com seus compromissos. O outro havia de tornado um homem com perfil machista, ou seja, grosso, estúpido, violento, a humilhar a mulher que jurava amar de todas as formas. 

Os anos se passaram, aquela mãezinha olhava o filho agora pai e se orgulhava. Mesmo tendo sido difícil, ver seu menino formado, pai de família e responsável, fez toda dificuldade valer a pena. A avó perdeu o filho para a cirrose. E ao olhar para o neto sem formação, viciado, agredindo-a inúmeras vezes e sendo preso por causar a morte da filha de alguém por feminicídio, olhou para si e se perguntou onde tinha errado. 

O que ambos tinham em comum? Nasceram meninos e puros. A diferença é que a educação foi a grande responsável por moldar de ambos o caráter. E educação não tem a ver apenas com escola ou com uma estrutura perfeita para criar os filhos, mas com valores inegociáveis quais se apresenta e pelos quais se luta para manter. Educar tem mais a ver com a postura que se tem frente aos filhos, do que palavras que não se pode ver. Se queremos ver uma sociedade sem violência, precisamos refletir como estamos educando as nossas crianças. Mudar conceitos é sempre possível!  

Comentários

Compartilhe esta notícia

Faça login para participar dos comentários

Fazer Login