
Terceira idade: quando a vulnerabilidade se torna fazer poético
Por Vicente Humberto*
A poesia é um elemento vivo — um componente essencial da arte de viver, independentemente da idade. Não existe essa coisa de "idoso" quando se fala de poesia. A poesia transcende o tempo, é feita de sentimentos, de percepção, de aura, de luz. Ela se conecta com a existência humana de forma profunda, como um exercício de espiritualidade que se renova com cada verso escrito.
Na verdade, não existe vida sem poesia. E não existe a criatura humana sem poesia. Ela é o que perpetua, ao longo da nossa jornada, nossas emoções, nossos cantos, nossas lágrimas, nossas dores e nossas lutas. Por isso, mais do que linguagem ou forma, ela é parte intrínseca da essência do viver, e seu exercício é vital em todas as fases da vida.
À medida que envelhecemos, nos deparamos com uma crescente relação de solidão e reflexão, o que torna o ato de escrever poesia ainda mais transformador. Envelhecer é também exercer um contato profundo com as perdas e com os vazios que elas geram. O acúmulo de experiências e a convivência com o tempo trazem uma nova percepção do mundo, e a vulnerabilidade que surge com a idade só fortalece a necessidade de expressar e ressignificar esses sentimentos.
Na terceira idade, a poesia adquire uma força renovada. Ela se torna um instrumento de reflexão, uma forma de lidar com a passagem do tempo, de olhar para o passado e trazer à tona as emoções que o marcaram. Ao mesmo tempo, a poesia ajuda a transformar a fragilidade em um ato criativo e curador. Nessa fase da vida, mais do que nunca, as emoções se tornam mais intensas, mais fortes, e o ontem se torna um presente que pode ser revisitado a qualquer momento, como se tudo fosse agora.
Essa vulnerabilidade traz consigo uma nova sensibilidade para a percepção do mundo. A visão do que nos cerca, das coisas simples, dos objetos do dia a dia, muda. O que antes parecia corriqueiro se transforma em algo de grande significado. Uma parede deixa de ser só uma parede. O gorjeio de um pássaro deixa de ser só um som. O vento, apenas vento. A mosca, apenas uma mosca. Na terceira idade, a poesia faz a vida pulsar mais forte, revelando uma beleza que só o tempo e a experiência podem proporcionar.
Essa transformação da percepção das coisas está ligada a um tipo mais sóbrio de sensibilidade. A maturidade permite que o olhar sobre a vida se torne mais atento, mais reflexivo, mais profundo. A poesia, assim, se revela como um meio único de acessar e transformar essa percepção, revelando nuances e significados ocultos em momentos que antes poderiam passar despercebidos.
O que é realmente encantador nesta fase da vida é que a poesia traz uma nova visão sobre a realidade, com uma delicadeza e uma profundidade que nem a juventude nem a adolescência são capazes de alcançar. É a poesia não só como um reflexo da vida, mas como uma maneira de vê-la de uma forma mais completa, mais humana, mais verdadeira. Ela emerge em sua plenitude quando o tempo já ensinou a ver o mundo de outra forma. E talvez seja isso o que a torna ainda mais preciosa: ela traz a capacidade de perceber o mundo de uma maneira única e repleta de sensibilidade.
A poesia, assim, não se limita a ser uma forma de expressão pessoal. Ela se torna um exercício de vida, uma maneira de exercer a humanidade em sua forma mais pura e refinada. Na terceira idade, ela é uma forma de ressignificar memórias, de refletir sobre a trajetória percorrida e, acima de tudo, de reafirmar a presença no mundo. Cada verso escrito é uma reafirmação do ser, uma maneira de registrar a continuidade da vida e da experiência humana.
Escrever, portanto, se torna um ato de resistência. O exercício da poesia é uma maneira de lidar com a vulnerabilidade e de encontrar, na fragilidade, um caminho de cura. Ao escrever, o poeta da terceira idade não só revisita o passado, mas transforma o seu presente e, quem sabe, deixa um legado para aqueles que virão. A poesia, então, é um abrigo, um consolo, uma oração. Ela nunca se faz em vão.
*Vicente Humberto (@vicentehumbertoo) nasceu em Uberaba, Minas Gerais. Ao longo da vida, morou em várias cidades, incluindo Goiânia, Pires do Rio, Ipameri, Inhumas, São Paulo, Ouro Preto, Belo Horizonte, Ituiutaba e Rio de Janeiro. Atualmente, reside entre Araxá (MG) e Catalão (GO). Poeta e escritor, formou-se em Engenharia de Minas pela UFMG e em Letras pela UFG. Sua estreia literária ocorreu em 1983 com o livro Folhas levadas. Também publicou Perpendiculares (Editora Arte Pau Brasil, 1986), Abacates no Caixote (Ficções Editora, 2020) e Borboletas no Repolho (Editora Ficções, 2021). Seu mais recente livro, Caixa de Vazios (Ficções Editora, 2024), aborda a falta, a solidão e os ciclos da vida. Além de escritor, Vicente lançou álbuns de música com seus poemas, disponíveis nas plataformas de streaming como Spotify e Deezer.
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