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Os Sinos que Vivem em Nós

Por Leônidas Oliveira*

Quando fecho os olhos, o primeiro som que me lembro da infância não é o da fala, nem do vento nas árvores do cerrado. É o som do sino. O sino da capela, da rua onde nasci. Um som que vinha do alto, cortando o céu da manhã com sua voz de bronze, anunciando que o tempo ali não era apenas contável – era vivido, sentido, celebrado. Um tempo que tinha peso e leveza, silêncio e ressonância.

Aprendi a tocar o sino com minha avó. Pequeno ainda, ela me erguia sobre um banco de madeira e, com ternura e precisão, me ensinava a puxar a corda no ritmo certo — nem brusco, nem frouxo, mas como quem conversa com o sagrado. Cada repique era uma mensagem. Cada toque, uma oração. Foi ali, no miúdo da vida, que aprendi que os sinos são mais que instrumentos: são vozes do tempo, da fé e da memória.

Esses sinos que um dia tocaram nas torres barrocas de Minas, continuam tocando dentro de nós. Eles vivem em nossa memória, em nossos gestos, na maneira mineira de sentir o mundo. Em São João del-Rei, o ofício dos sineiros é ainda vivo e reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial. Mas ele também está em cada mineiro que, mesmo distante da torre, sabe reconhecer o sino que vive dentro de si.

Nas serras úmidas da Zona da Mata, no cerrado do centro-oeste e no semiárido do norte, cada sino tem um timbre. Cada bioma imprime ao som uma textura distinta. O sino da mata embala a névoa, o do cerrado espalha-se livre pelos campos, o do sertão resiste seco e direto como o povo que ali vive. E em cada canto, há sineiros e histórias, há sons e silêncios carregados de sentido.

Os sinos de Minas são parte de um barroco que não se restringe às igrejas: são parte de um barroco da alma, onde tudo é curva, dobra, reverência. Eles compõem a paisagem sonora da mineiridade. São o pano de fundo dos rituais, das festas, dos encontros e das despedidas.

Lendo novamente estas linhas, recordo o que canta o Coldplay em "Viva La Vida" — quando os sinos tocam, algo maior se revela. É como se o badalo atravessasse a eternidade, abrindo espaço para a reconstrução do que somos. Em tempos de emoções líquidas, como escreveu Zygmunt Bauman, o som do sino permanece sólido. É onda. É movimento. É oração em forma de som.

E talvez seja isso que mais nos comova: o sino é, ao fim, música. E Minas é música.

Do timbre ancestral da rabeca de Minas — único instrumento de corda friccionada criado no barroco brasileiro — à poesia dos sinos, tudo aqui canta. Marcus Viana, com sua rabeca telúrica, faz o tempo vibrar com mais verdade do que qualquer violino de concerto. Das harmonias do Skank e do Jota Quest ao Clube da Esquina — onde Milton Nascimento e Lô Borges cantaram o coração do mundo — e às vozes de Toninho Horta, tudo em Minas pulsa como partitura viva.

As folias e congadas, os sinos de São João, as bandas de coreto e as vozes que ecoam dos vales compõem a sinfonia de uma terra onde a musicalidade é herança e invenção, onde tradição e contemporaneidade se encontram.

Como escreveu Fernando Brant, "Minas são muitas... porém este estado é mais que um estado, é uma voz." Essa voz é também a dos sinos. E essa voz é a que ressoa em cada dobra do tempo, na música e na palavra.

E como Drummond, entre pedras e sinos, também escutamos o essencial: "A poesia está nos sinos que não dobram mais, mas ainda vivem em nós." 

Os sinos que vivem em nós são memória, arte e sentido. Que nunca deixemos de ouvi-los — nem mesmo em silêncio.

*Leônidas Oliveira é secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais

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