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O Espelho das Críticas

Criticar os outros é um hábito tão entranhado na vida humana que às vezes se confunde com a própria linguagem. Desde pequenas conversas de esquina até debates públicos em arenas políticas, o gesto de apontar a falha alheia parece quase natural, como se criticar fosse uma forma inevitável de participação no mundo. Contudo, a crítica - especialmente quando gratuita, repetitiva ou excessiva - raramente fala apenas sobre quem é alvo dela. Muito mais reveladora é a face de quem a pronuncia.

Com frequência, a crítica funciona como um espelho invertido: aquilo que julgamos no outro é o que não suportamos enxergar em nós mesmos. Ao denunciar a desorganização de alguém, talvez ocultemos nossa própria dificuldade em lidar com a rotina. Ao zombar da insegurança de outro, podemos estar mascarando nossos medos mais íntimos. Criticar, nesse sentido, é um ato de fuga, uma maneira de manter o olhar sempre voltado para fora, para que não seja preciso encarar as inquietações que habitam dentro de nós. É como varrer a poeira para fora da casa, sem perceber que a sujeira principal continua escondida nos cômodos internos.

Em outros momentos a crítica assume um tom mais sutil, quase sedutor: ela se disfarça de elogio ao próprio crítico. Quando alguém afirma, em tom de reprovação, que “certo indivíduo não sabe se portar”, está, de modo indireto, afirmando a própria superioridade moral. Ao destacar a falha de outro, sugere-se: “Eu não cometeria tal erro”. Esse tipo de crítica não apenas ataca, mas também engrandece quem a profere, construindo uma narrativa em que o crítico aparece como medida e referência. É um palco em que o outro é usado como contraste, apenas para que a própria imagem se projete mais nítida.

Há ainda uma dimensão social e profundamente relacional da crítica: a de excluir para incluir. Em muitos grupos, apontar defeitos de terceiros se torna uma estratégia de sobrevivência. Critica-se o ausente, aquele que não está ali para se defender, e ao fazê-lo, o crítico conquista uma sensação de pertencimento. É como se o sacrifício simbólico do outro garantisse lugar dentro do círculo. A crítica, nesse caso, deixa de ser um juízo sobre condutas e se transforma em moeda de troca para aceitação.

E quando duas ou mais pessoas se reúnem em torno de uma crítica comum, o fenômeno adquire contornos ainda mais perigosos. O alvo compartilhado cria um elo imediato: “nós” contra “ele” ou “eles”. A sensação de comunidade surge não pela construção de valores positivos, mas pela exclusão de um terceiro. É um pertencimento frágil, que depende da constante presença de alguém do lado de fora. Sem esse bode expiatório o grupo corre o risco de dissolver-se, pois sua identidade foi erguida não em ideias próprias, mas em oposição ao outro.

Essas formas de crítica como fuga, como autoelogio, como exclusão ou como cimento artificial de grupos são sintomas de uma sociedade que ainda não aprendeu a lidar plenamente com o espelho da própria consciência. E, ao mesmo tempo, são sintomas de nossa fragilidade individual: a dificuldade em suportar nossas imperfeições, a necessidade de sentir-se superior para não se perder na própria insegurança, o medo de ficar sozinho e não ser aceito.

 

Entretanto, não se pode demonizar toda e qualquer crítica. Seria ingênuo imaginar que viver em sociedade é abdicar do julgamento ou silenciar diante do que precisa ser dito. Há críticas que são necessárias, legítimas e até mesmo indispensáveis para o crescimento humano. A diferença está na intenção, no fundamento e no efeito. Uma crítica vazia reduz a pessoa à falha que aponta; já uma crítica justa reconhece que ninguém se resume a um erro.

A crítica saudável nasce de um olhar lúcido e generoso. Ela não se apoia em impressões apressadas, mas em dados concretos e observações racionais. Em vez de servir como pedra arremessada, é oferecida como ponte que indica um caminho. Quando bem formulada, a crítica ilumina um ponto cego, trazendo à tona aquilo que talvez o outro não perceba em si. E mais: abre a possibilidade de transformação.

A verdadeira crítica não humilha, não ridiculariza, não expulsa. Ela não ergue muros, mas abre janelas. Reconhece a complexidade do ser humano, compreende que falhas fazem parte da existência e, ao apontá-las, convida à superação. Nessa perspectiva, criticar é também cuidar. É dizer ao outro: “Há algo aqui que pode ser diferente, e eu acredito que você pode ser maior do que esse tropeço”.

Talvez possamos imaginar a boa crítica como a luz suave de uma lamparina. Ela não cega, não queima, não expõe de modo cruel, mas revela o suficiente para que o caminho seja visto com mais clareza. Ao contrário, a má crítica é como um holofote agressivo que ofusca mais do que ilumina e reduz a pessoa à caricatura de sua falha.

No fim, a crítica que vale a pena é aquela que não reduz, mas amplia; não é a que fecha, mas a que abre. É um gesto que, quando verdadeiro, deixa de ser julgamento e se transforma em orientação. Assim, podemos aprender a criticar não para excluir, mas para incluir; não para ferir, mas para despertar; não para engrandecer a nós mesmos, mas para ajudar o outro a crescer.

E talvez aí esteja a lição maior: a crítica pode ser faca ou pode ser ferramenta. Pode ferir ou pode construir. Depende do modo como é empunhada e, sobretudo, da intenção de quem a segura. Se usada com sabedoria a crítica se torna menos um espelho turvo do crítico e mais uma janela aberta para o desenvolvimento mútuo.

Porque no fim das contas, criticar é também revelar algo de nós mesmos. E escolher o tipo de crítica que oferecemos ao mundo é, em grande medida, escolher o tipo de mundo que desejamos habitar.

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