
A dança silenciosa da repetição: o inconsciente e seus ciclos
Há algo de misterioso no modo
como a vida insiste em repetir-se. Caminhos que parecem novos, mas que nos
conduzem a velhos becos. Relações diferentes, mas sempre com o mesmo desfecho.
Decisões tomadas em contextos distintos, e ainda assim os ecos de uma história
conhecida retornam como uma música que nunca deixa de tocar. Essa estranha
compulsão de voltar ao mesmo ponto não é apenas fruto do acaso ou de uma má
sorte reiterada. É, sobretudo, obra do inconsciente. Freud e Lacan, cada um à
sua maneira, nos ensinam que a repetição é um enigma central da experiência
humana, e compreender seus desígnios é também aprender a viver com mais
lucidez.
Freud percebeu cedo que o
inconsciente não opera pela lógica da linha reta, mas por circuitos circulares.
O que se recusa a ser simbolizado, o que foi recalcado, retorna travestido de
sintoma, sonho ou ato falho. Essa volta não é acidental: o inconsciente busca,
incansavelmente, reinscrever na cena presente aquilo que não pôde ser elaborado
no passado. É como se a vida psíquica estivesse comprometida com uma tarefa não
concluída, que insiste em se apresentar até que o sujeito possa finalmente
dar-lhe uma significação. Daí a noção freudiana de compulsão à repetição. Freud
observou que, em vez de se mover apenas em direção ao prazer ou à evitação do
desprazer, o inconsciente muitas vezes leva o sujeito a reproduzir experiências
dolorosas. Um exemplo clássico é o do paciente que, apesar de sofrer com
relacionamentos abusivos, retorna repetidamente a parceiros que reproduzem a
mesma violência. A lógica do prazer não explica isso - mas a lógica da
repetição, sim. O inconsciente parece buscar não o bem-estar imediato, mas a
possibilidade, sempre adiada, de elaborar o trauma.
Se Freud abriu a porta, Lacan a
atravessou com radicalidade. Para ele, a repetição não é simples memória. O que
retorna não é um conteúdo guardado em algum depósito da mente, pronto para ser
reencenado. O que retorna é a própria estrutura de falta que nos constitui.
Lacan nos lembra que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e o que
nele insiste não é o conteúdo do passado em si, mas a marca de um desejo nunca
plenamente satisfeito.
Repetimos, então, não para
recuperar algo perdido, mas porque o objeto que buscamos jamais esteve
plenamente ao nosso alcance. Cada tentativa de reviver o prazer inicial nos
confronta, de novo, com a ausência fundamental. É o que Lacan chama de “o real
da repetição”: a insistência do impossível, o encontro reiterado com a mesma
pedra no caminho, justamente porque aquilo que desejamos não pode ser
definitivamente obtido.
Vista sob essa lente a repetição
de hábitos e padrões não é mera teimosia do caráter. É a encenação de uma busca
inconsciente que se disfarça em rotina. A pessoa que sempre adia projetos
talvez não esteja apenas com “preguiça”, mas tentando reproduzir a sensação de
impotência vivida em algum momento inaugural. O sujeito que coleciona fracassos
em sua vida amorosa talvez esteja repisando a cena de um abandono infantil. A
repetição é, portanto, uma forma de fidelidade a uma história que não se sabe
contar de outro modo.
É aqui que se pode invocar a
sabedoria popular condensada na frase: “quem planta vento colhe tempestade.” Na
psicanálise, não há ventos soprados por forças externas caprichosas; há,
sobretudo, a tempestade fabricada pela insistência de nossos próprios gestos
inconscientes. Plantamos no presente os ventos de nossos traumas, e eles
retornam como tormentas que parecem inevitáveis.
A questão crucial é: se o
inconsciente nos conduz à repetição, como escapar dessa dança silenciosa? Freud
aponta o caminho pela elaboração - tornar consciente aquilo que estava
recalcado, dar palavra ao indizível, reconhecer no sintoma a mensagem do
inconsciente. O que se repete só se dissolve quando é simbolizado.
Lacan, por sua vez, acrescenta
que não se trata apenas de “lembrar” ou “tomar consciência”, mas de se
relacionar de outro modo com a própria falta. O sujeito não supera a repetição
anulando-a, mas deslocando-se em relação a ela. É preciso atravessar o
fantasma, perceber que não há objeto perfeito que venha preencher o vazio. Essa
travessia abre espaço para escolhas mais livres, menos determinadas pelo
automatismo inconsciente.
Superar a repetição não é romper
com a história, mas reescrevê-la. Isso implica reconhecer que o que se repete
não é destino, mas cena. Ao perceber a lógica de sua repetição, o indivíduo
pode começar a introduzir pequenas variações, criar novos roteiros. O trabalho
analítico é, em grande medida, o trabalho de reescrever a própria narrativa,
para que o sujeito deixe de ser um ator passivo e torne-se coautor de sua peça.
O primeiro passo é observar-se:
notar os padrões que retornam, os lugares em que sempre se tropeça, os gestos
que parecem automáticos. Em seguida, é necessário nomear: colocar em palavras
aquilo que até então só se expressava como ato repetitivo. Por fim, trata-se de
assumir a responsabilidade: compreender que a tempestade que colhemos não é
obra dos outros, mas resultado dos ventos que nós mesmos semeamos, muitas vezes
sem perceber.
A repetição é a fidelidade
obscura do inconsciente a um passado não simbolizado, mas também a chance de
reencontrar, em cada retorno, a possibilidade de fazer diferente. Freud nos
mostrou que o que não é elaborado retorna; Lacan nos ensinou que repetimos
porque falta algo que nunca se dará por inteiro. Entre esses dois mestres,
resta ao sujeito a tarefa mais difícil: a de não viver como marionete da
compulsão, mas de assumir a autoria de sua história.
Quem compreende a lógica da
repetição começa a perceber que a vida não é apenas um círculo fechado: é uma
espiral. Cada retorno pode trazer a chance de uma diferença, cada repetição
pode ser uma oportunidade de deslocamento. E, assim, talvez possamos
transformar os ventos que semeamos para que em vez de tempestade possamos
colher um céu mais claro.
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