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O verdadeiro silêncio do revide

“Pensei em revidar, mas olhei para a vida que você leva e deixei pra lá.”

À primeira vista, a frase soa sábia, quase como uma lição de autocontrole. Parece vir de alguém que escolheu a paz, que preferiu o silêncio à disputa. Mas, ao examiná-la com calma, percebe-se que o tom não é de serenidade, e sim de desprezo. Há um julgamento embutido, uma comparação velada, uma superioridade travestida de calma. O que parece sabedoria é, na verdade, uma forma mais sofisticada de revide.

Quando alguém diz “olhei para a vida que você leva”, está implicitamente afirmando: “não preciso revidar, a sua própria existência já é punição suficiente.” E nisso reside o equívoco. O desprezo disfarçado de virtude continua sendo uma resposta, uma reação, uma devolução de dor. Revidar não é apenas atacar ou gritar - é também menosprezar, julgar, sentir-se superior. Ainda é estar preso à mesma lógica da ofensa, apenas trocando de roupagem.

A verdadeira paz não nasce da comparação, mas do desapego. Quando olhamos para o outro buscando justificar nosso silêncio pela suposta miséria da vida dele, ainda estamos envenenados pelo ressentimento. É uma espécie de vingança moral: não falo nada, mas dentro de mim já o condenei. Isso não é perdão, é orgulho. E o orgulho é, quase sempre, o disfarce mais elegante da mágoa.

Pode ser, de fato, que a vida daquela pessoa que nos feriu seja infeliz, desajustada, marcada por frustrações, dores e faltas. E talvez seja exatamente por isso que ela tenha agido com maldade. Quem vive em sofrimento tende a projetar esse sofrimento nos outros. Quem carrega dentro de si um vazio tenta preenchê-lo ferindo o que está fora. É uma lógica triste, mas humana: cada um oferta o que tem dentro de si. E quem só tem dor, inevitavelmente espalha dor.

Perceber isso não significa justificar o mal, mas compreendê-lo. A compreensão é o primeiro passo para a liberdade interior. Quando entendemos que o outro agiu assim não porque somos piores, mas porque ele não soube agir diferente, deixamos de carregar a ofensa como um fardo pessoal. O gesto dele fala sobre ele, não sobre nós. O mal que o outro faz é apenas o reflexo do que o habita.

A maturidade emocional surge quando deixamos de querer ajustar as contas. Quando paramos de medir o que é justo ou injusto e passamos a perguntar: “o que quero levar comigo depois disso?” Essa pergunta muda tudo, porque desloca o foco do outro para nós. E é aí que nasce a verdadeira serenidade - no instante em que escolhemos não dar continuidade ao ciclo de dor.

Ser grato pela própria vida é um antídoto contra qualquer necessidade de revanche. A gratidão reorganiza a mente, reposiciona o olhar, faz a ferida encolher. É um ato de lucidez, não de ingenuidade. Ser grato não é fingir que não doeu, mas reconhecer que a dor não define o rumo da nossa história. A energia que colocamos no ressentimento é energia que falta para a construção de algo melhor. Cada minuto gasto julgando a vida alheia é um minuto roubado da nossa própria plenitude.

Quando alguém nos fere, é natural que a primeira reação seja a raiva. Ela é humana, instintiva. Mas se nos deixamos dominar por ela, acabamos nos tornando espelhos daquilo que reprovamos. Revidar é aceitar o convite para entrar no território do outro. É admitir que ele conseguiu nos arrastar para o seu nível de desequilíbrio. E, em silêncio, dizer: “sou igual a você.”

O caminho mais sábio é outro. É olhar para a própria vida com gratidão e dizer: “não preciso me provar.” É entender que o verdadeiro poder está em não reagir. Deixar para lá não porque a vida do outro é triste, mas porque a sua é boa o suficiente para não ser contaminada. Não se trata de desprezo, mas de preservação. É proteger o que há de sereno em nós.

O olhar que compara ainda está preso ao orgulho. O olhar que compreende já se libertou. A frase “olhei para a vida que você leva e deixei pra lá” não expressa paz; expressa julgamento. A verdadeira serenidade não precisa se apoiar na desgraça alheia para existir. Ela nasce da consciência de que cada um está em seu próprio processo e que nada do que o outro faz é capaz de determinar quem somos.

Olhar para a própria vida é um exercício de lucidez. Tudo o que o outro emite retorna primeiro a ele. A raiva que lança o consome antes de alcançar alguém. A inveja que espalha o fere antes de se projetar. Quando compreendemos isso, a resposta se torna desnecessária. Por pura lógica, o revide deixa de fazer sentido: por que devolver o que não é meu?

A vida é curta demais para se gastar tentando acertar as contas da alma dos outros. Cada um vive o que é capaz de sustentar. Cada um age de acordo com o que tem dentro de si. E essa é talvez a lei mais justa que existe. O mal se desgasta em si mesmo, enquanto o bem se renova no silêncio.

A gratidão, mais do que um sentimento, é uma escolha racional. É o que nos mantém em paz, mesmo quando o mundo parece provocativo e injusto. Quando somos gratos, a provocação alheia perde o volume. O barulho do mundo se distancia. Não há prazer em menosprezar ninguém; há apenas o desejo de seguir em frente, de continuar em paz, de não desperdiçar a vida com aquilo que não nos acrescenta.

No fim das contas, o verdadeiro revide é o silêncio. Mas não o silêncio de quem se julga superior — o silêncio de quem não precisa mais disputar nada. O silêncio de quem entendeu que cada um devolve ao mundo o que tem dentro de si. É o silêncio de quem aprendeu a não se deixar arrastar para a escuridão alheia.

O mal que o outro faz é o retrato do que o habita. Quando ele espalha veneno, é porque é o que transborda do seu próprio interior. E o mais sensato é não beber dessa fonte, nem sequer observá-la por muito tempo. A serenidade nasce do cuidado com o próprio jardim: regar o que é bom, cultivar o que é leve, agradecer o que é estável. Ao cuidar de si, você já respondeu a tudo.

Ninguém vence o outro. Cada um apenas confirma, em suas ações, o que carrega dentro. Quem escolhe a gratidão, a calma e o autodomínio, mesmo em silêncio, já venceu. Porque olhar para a vida do outro para sentir-se superior é continuar preso ao conflito. Mas olhar para a própria vida com gratidão é libertar-se dele. E talvez essa seja a forma mais lúcida e silenciosamente vitoriosa de revidar o mal: não o revidando.

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