Foto de capa da notícia

Sou Estrada

“O mundo é um livro e aqueles que não viajam leem apenas uma página.” (Santo Agostinho)

Eu viajo porque há uma espécie de renascimento em cada partida. Viajar é morrer um pouco para a versão anterior de mim mesma, aquela que conhecia apenas o daqui, e nascer para um mundo em que tudo é de novo. É um ritual sutil de transformação: as malas arrumadas, o bilhete em mãos, o coração acelerado. É o momento em que deixo de ser espectadora da própria vida e volto a ser protagonista, caminhando, atravessando fronteiras, desfazendo minhas certezas para dar lugar ao desconhecido.

 

Eu viajo porque cada cidade me empresta um pedaço de alma, e eu devolvo um pedaço da minha em troca. Há lugares em que chego e sinto de imediato que já estive ali, não com o corpo, mas com a alma, com o sonho. Ruas que parecem me reconhecer, como se dissessem: "Ah, até que enfim." E quando vou embora, deixo nelas uma memória invisível: uma risada, um passo, um olhar. Às vezes, penso que viajar é o modo mais bonito de espalhar versões de nós pelo mundo.

 

Eu viajo porque o silêncio das viagens me cura de ruídos internos que me perseguem, alguns que eu nem percebia mais. A solidão temporária de casa trocada por um quarto de hotel, a quietude de um amanhecer em um país qualquer, a pausa entre uma estação e outra, tudo isso alivia o pensamento, dá folga às angústias, permite que a alma respire. O que a rotina afoga, a estrada devolve. E é nesse intervalo entre o conhecido e o possível que minha mente reencontra a serenidade que o cotidiano insiste em descosturar.

 

Eu viajo porque o acaso é um grande mestre, e eu só o encontro quando abandono os planos rígidos e a rotina castigante. Gosto de me perder, inclusive de me perder de propósito, virar à esquerda em vez de à direita, entrar num beco que não está no mapa, conversar com alguém que nunca mais vou ver. Nesses desvios, descubro o inesperado: um mural escondido, um cantor ou um instrumentista na rua, um pôr do sol que ninguém fotografa. E entendo, de novo, que a vida acontece mais nos tropeços do que no trajeto perfeito.

 

Eu viajo porque o mundo é feito de espelhos, e em cada reflexo eu vejo quem sou com mais nitidez. No olhar de uma mulher no mercado, na pressa de um executivo no metrô, no riso de uma criança correndo pela praça ou para alcançar a fila de colegas e a professora nos corredores dos museus, percebo que todos somos feitos da mesma matéria: desejo, medo, curiosidade, afeto. E é essa semelhança tão universal, tão dispersa que me faz sentir parte de algo maior, mesmo quando estou sozinha num país estrangeiro.

 

Eu viajo porque há uma beleza infinita naquilo que nunca será meu. A arquitetura que não construí, a paisagem que não habitei e que nunca será ilustração da minha janela, o idioma que não domino, tudo isso me encanta precisamente porque é outro. Viajar é um exercício de humildade: o mundo não foi feito para mim, mas me recebe mesmo assim. E, por um breve período, me permite habitá-lo como quem entra em um templo, em silêncio, com reverência.

 

Eu viajo porque é no movimento que encontro permanência. Contraditório, eu sei, mas é quando estou em trânsito, mudando de lugar, de fuso horário e de tempo, que percebo aquilo que permanece dentro de mim: meus valores, minhas dores, meus sonhos. Viajar me devolve o eixo, não porque me fixa, mas porque me lembra que posso mudar e, ainda assim, continuar inteira.

 

Eu viajo porque o mundo é uma carta de amor que não para de se escrever. Cada destino é uma frase, cada madrugada em claro é uma vírgula, cada novo encontro é um acento e eu leio, contínua, essa carta infinita onde a vida se revela mais nítida, mais vibrante, mais colorida. Viajar é responder a essa carta com passos, com perguntas, com contemplação. É um diálogo silencioso e profundamente íntimo.

 

Eu viajo porque nada me envelhece menos do que me maravilhar. E é impossível não se maravilhar diante da vastidão da Terra, seja no topo de um vulcão, seja derramando lágrimas silenciosas diante de uma obra de arte, seja ouvindo um idioma que soa estranho ou que soa como música ou mesmo no meio da multidão que sempre está nos parques, nas catedrais ou nos pontos turísticos mais conhecidos. A curiosidade é o contrário da velhice. E o encantamento... ah, o encantamento é um antídoto poderoso contra a monotonia do mundo.

 

Eu viajo porque há coisas que só posso aprender quando estou longe. Sobre mim. Sobre os outros. Sobre tudo o que liga uma ponta à outra do planeta. E também sobre o que pode ser desaprendido: preconceitos, medos, certezas absolutas. Viajar é desconstruir-se com poesia. É perder as partes rígidas, deixar cair as couraças, permitir que o novo penetre. É, no fundo, evoluir com beleza e gratidão.

 

Eu viajo porque se o mundo é um livro, quero lê-lo inteiro, devagar, página por página, sem pressa para chegar ao fim. Quero as notas de pé de página, os capítulos longos, os epílogos surpresa. Quero me perder na história, encontrar outras versões de mim e, quem sabe, reescrever o que achava que já estava definido. Quero viajar até o último suspiro porque o fim, esse sim, virá sozinho... e que demore muito! Até lá, que as malas estejam prontas. Que o coração esteja aberto. Que a alma siga curiosa.

Comentários

Compartilhe esta notícia

Faça login para participar dos comentários

Fazer Login