Afinal, faltam médicos no Brasil?
Nos últimos anos, observamos um aumento no número de cursos de medicina no país, grande parte desses deflagrados pela via judicial e então submetidos ao processo regulatório conduzido pelo MEC. O Brasil tem hoje mais cursos de Medicina do que jamais teve, ainda assim, a percepção generalizada entre usuários do SUS e de planos de saúde é a mesma: faltam médicos, faltam especialistas, falta disponibilidade em prazo razoável.
Enquanto entidades profissionais argumentam que o país já possui escolas médicas em excesso, outros setores sustentam o oposto: ainda não formamos médicos suficientes. No meio desse debate polarizado, um ponto é incontestável: o Brasil enfrenta um déficit expressivo de médicos especialistas, especialmente fora dos grandes centros urbanos.
Os dados mais recentes da Demografia Médica 2025, conduzida pela Faculdade de Medicina da USP em parceria com o Ministério da Saúde e a Associação Médica Brasileira, mostram que, embora o Brasil tenha ampliado o número de profissionais especializados, essa expansão não tem ocorrido de forma equilibrada no território nacional. Enquanto o Distrito Federal e o Rio Grande do Sul apresentam percentuais mais elevados de especialistas entre seus médicos, 72,2% e 67,9%, respectivamente, estados como Rondônia e Piauí registram índices inferiores a 50%, revelando uma clara desigualdade na distribuição desses profissionais.
Essa concentração também se reflete quando se observa a distribuição regional. A região Sudeste concentra mais da metade de todos os especialistas do país (55,4%), seguida pelo Sul (16,7%) e Nordeste (14,5%). Em contrapartida, Norte e Centro-Oeste somam pouco mais de 13% desse contingente. As especialidades mais demandadas pela população, como Clínica Médica, Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, Anestesiologia e Ortopedia e Traumatologia, permanecem concentradas nos grandes centros urbanos, deixando lacunas importantes nos territórios que mais carecem de profissionais. Nas capitais, há concorrência por profissionais; no interior, há escassez crônica.
O Painel da Formação Médica, lançado pela Associação dos Mantenedores Educadores do Ensino Superior (AMIES), confirma esse diagnóstico. O estudo reforça que as áreas com maior número de especialistas coincidem com aquelas apontadas pela Demografia Médica e que a desigualdade regional permanece como um elemento crítico. A convergência entre os levantamentos destaca que a formação de médicos no Brasil segue respondendo prioritariamente às dinâmicas regionais mais desenvolvidas, enquanto regiões com menor infraestrutura de saúde continuam desassistidas.
Nesse cenário, é ilusório acreditar que abrir ou fechar cursos de Medicina, isoladamente, resolverá o problema. O Brasil precisa de políticas públicas coordenadas, estáveis e de longo prazo, que incluam planejamento regional da força de trabalho em saúde, fortalecimento e ampliação da residência médica, incentivos reais à fixação de profissionais no interior.
Além disso, é imprescindível que haja estabilidade regulatória que permita às instituições privadas contribuírem de forma responsável e contínua com a ampliação da formação médica de qualidade no país. Com presença capilarizada e capacidade de expansão em regiões menos atendidas, as instituições privadas de ensino superior são parte indispensável dessa equação. Ignorar ou desconsiderar sua força formativa significa perder a oportunidade de reduzir desigualdades históricas na oferta de especialistas.
O debate sobre a escassez ou excesso de escolas médicas é longo e possui várias vertentes. Contudo, não há como negar que faltam médicos especialistas nos lugares certos. Para enfrentar esse quadro, o Brasil precisa de um compromisso amplo, envolvendo Estado, setor privado e sociedade, para garantir que a formação de especialistas responda às particularidades de cada território e possa garantir acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. O direito fundamental à saúde, previsto na Constituição Federal, não se concretiza sem profissionais qualificados distribuídos de forma equilibrada pelo país.
Somente com a atuação articulada entre os diversos agentes envolvidos na política pública de saúde e educação será possível assegurar que a população, independentemente de onde vive, tenha acesso a cuidados médicos qualificados. Sem esse esforço conjunto, a desigualdade na demografia médica continuará se traduzindo em desigualdade no atendimento em saúde, um cenário que o país não pode mais adiar enfrentar.
*Priscila Planelis é advogada especialista em Direito Educacional e Secretária-Executiva da Associação dos Mantenedores Independentes Educadores do Ensino Superior (AMIES), entidade representativa dedicada à defesa de políticas públicas que garantam qualidade na educação superior
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