“Guerra na Ucrânia está longe do fim”, analisa Felipe Loureiro
Em 24 de fevereiro de 2022, tropas russas invadiram a Ucrânia. O conflito é antigo e já é considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a maior crise de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. A Unicamp divulgou nesta semana uma entrevista com o professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) Felipe Loureiro. Para ele, “a guerra da Ucrânia é um sintoma de uma grave crise na ordem Internacional pós Guerra Fria. Infelizmente, não parece que estamos próximos de resolvê-la”.
Recentemente, Felipe lançou o livro “Linha Vermelha: A Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais no século XXI” pela Editora Unicamp. A obra reúne artigos de pesquisadores que analisam diversas facetas do conflito. Conforme Loureiro, uma das origens da guerra, que completa um ano este mês são as disputas na construção da identidade nacional de russos e ucranianos. Há indícios de que a situação deve se agravar nos próximos meses.
A “linha vermelha”, que dá título ao livro, é uma metáfora que estabelece limites e consequências e que vem sendo recorrentemente utilizada pelos atores envolvidos na guerra, explica ele. No primeiro dia da invasão da Ucrânia, o presidente russo dizia: “[A possível entrada da Ucrânia na Otan] não é apenas uma ameaça real aos nossos interesses, mas à própria existência do nosso Estado e da nossa soberania. É uma linha vermelha sobre a qual falamos em inúmeras ocasiões. E eles a cruzaram”, lembra, no livro, o professor, que também foi coordenador do Observatório Democracia no Mundo da USP (2021-2022).
Com o extremismo nacionalista de Putin, a consequência foi guerra. Mas, segundo Loureiro, diversas linhas vermelhas vêm sendo cruzadas ao longo do conflito. Para a Ucrânia, a Rússia cruzou essa linha com os crimes de guerra cometidos. Sob a perspectiva do Sistema Internacional, a própria guerra é uma linha vermelha ultrapassada. “Essa metáfora é extremamente perigosa. É um tipo de linguajar que diplomatas, e mesmo estadistas, ao longo dessas últimas décadas pós Guerra Fria, não vinham utilizando, porque ela fecha portas para o diálogo”, diz.
AS ORIGENS DO CONFLITO
O conflito, na região, não é novo. O território da Ucrânia foi disputado não só pela Rússia, como também pelos mongóis (século XIII), pela Comunidade Polaco-Lituana (século XVI) e pelos turcos (século XVII). Na metade do século XVII, foi criado o Hetmanato Cossaco, o berço da identidade ucraniana, como assinala Felipe Loureiro no primeiro capítulo do livro, em que há um apanhado sobre a história do país. Para se proteger da Polônia, o Hetmanato fez uma aliança com o czarado da Moscóvia (futuro Império Russo).
No fim do século XVIII, o Império Russo controlou politicamente a maior parte do atual território da Ucrânia, após reformas que coibiram a liberdade do Hetmanato. Já no século XIX, em 1840, ocorreram as primeiras manifestações da identidade e do nacionalismo ucraniano que, como afirma Loureiro no livro, ironicamente decorrem de instituições culturais e de ensino fomentadas pelos russos em Kiev, “em reação à revolta separatista de nobres poloneses”. Intelectuais começaram a “fomentar a identidade ucraniana separada da russa”, e, em reação, houve forte repressão, com o banimento da língua ucraniana por exemplo.
Ao fim da revolução russa de 1905, caíram as restrições aos ucranianos. No início do século XX, movimentos de independência se fortaleceram. Já depois da Revolução de 1917 e da Primeira Guerra Mundial, em 1922, a Ucrânia soviética torna-se uma das quatro repúblicas da URRS, que, em tese, tinham independência e estavam em nível de igualdade com a Rússia. No entanto, sob Stálin, houve um processo de retomada de territórios ucranianos, russificação (tendência que persistiu depois) e conflitos armados. No final da Guerra Fria, com a dissolução da URSS, as relações entre Kiev e Moscou estavam extremamente tensas.
Mesmo com a declaração de independência ucraniana, em 1991, “não acaba esse sentimento de grande parte da sociedade russa de que a Ucrânia é uma parte intrínseca da Rússia, e aí está a base do conflito. Desde o início da Independência, todos os presidentes ucranianos e todos os presidentes russos, embora não tenha havido muitos (mandatários russos), entraram em conflito pela mesma questão”, diz o professor.
Por toda essa conturbada relação, elucida Loureiro, a guerra é bem mais ampla que a figura de Putin. Entre os próprios russos, porém, essa relação é pensada de formas divergentes. Para alguns, a Ucrânia é parte da Rússia, mas isso não significa que ela tenha que se subordinar à Rússia. “Mas, indo para o extremo do espectro político, do ponto de vista do radicalismo nacionalista, que é uma concepção que o Putin expressa muito bem, a Ucrânia seria não só uma parte intrínseca, como uma parte subordinada a essa grande Rússia, ou seja, a essas três grandes nações: a Rússia, a Bielorússia e a Ucrânia”, elucida Loureiro.
FUTURO
Sobre o futuro do conflito, Loureiro acredita que está longe do fim e não descarta a possibilidade de afetar regiões vizinhas, de forma intencional ou não — como, por exemplo, com um míssil atingindo acidentalmente um país fronteiriço. Ele também vê com preocupação o fato de os ataques estarem atingindo civis, como o que ocorreu em Dnipro em 14 de janeiro, em um bombardeio a um prédio que resultou na morte de mais de 50 pessoas.
O professor lembra que esse tipo de atuação, caso comprovada a sua intencionalidade, bem como a inexistência de funções militares dos alvos atingidos, é considerada um crime de guerra, ferindo normas básicas do Direito Internacional e do Direito Humanitário. “O que a Rússia vem fazendo nesses últimos meses é atacar a infraestrutura básica da Ucrânia, o que torna a situação cada vez mais difícil para a população ucraniana, ainda mais no contexto de inverno.”
Esses ataques, afirma, têm como objetivo pressionar o governo ucraniano à negociação, mas “acabam transbordando muitas vezes não apenas para instalações de infraestrutura, como também para residências de civis”. Devido aos recentes investimentos na guerra e à elevação de tensões, conclui, “está cada vez mais claro que estamos diante de um conflito muito longe de terminar”, e, neste sentido, é importante que países como o Brasil, com uma longa tradição diplomática, mantenham-se em posição de neutralidade, para poderem atuar em uma possível negociação de cessar-fogo.
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